Não é verdade que 65% dos projetos que utilizam agilidade falham

Avelino segurando um microfone e uma camiseta preta escrita Agile. Ele é pardo, barba e cabelos grisalhos.

Compartilhe:

Projetos que utilizam agilidade falham? Há cerca de uma semana um estudo com um título bombástico tomou conta da web: “268% dos projetos que passaram a utilizar Métodos Ágeis pioraram e 56% passaram a falhar”, dizia o título. E ao ler o conteúdo, pareceu que havíamos encontrado a solução que resolveria todos os problemas economizando mais de U$ 155 bilhões de dólares por ano. A premissa de Frederick Brooks estaria errada? Existe uma Bala de Prata?

Recebi através de mensagens em alguns grupos de WhatsApp. Todavia não quis me intrometer porque sou um tanto ranzinza e detesto entrar em discussões online. Deixei rolar, mas algo me chamou a atenção, foi o número 268. Trabalho com projetos desde 1998, com Métodos Ágeis (Agilidade) desde 2008 e nem nos meus piores dias esse número me pareceu crível. Das três hipóteses, apenas uma poderia ser verdadeira: a) eu sou um gênio e só trabalhei com pessoas geniais toda minha vida profissional; b) os 600 engenheiros de software que responderam à pesquisa são as pessoas mais azaradas do mundo; ou c) esse estudo tem algum erro.

A pesquisa sobre projetos que falham

A pesquisa foi feita por um pesquisador, Junade Ali, e pela empresa J.L. Partners entre os dias 3 e 7 de maio de 2024. Responderam à pesquisa exatamente 600 engenheiros de software, sendo 250 do Reino Unido e 350 dos EUA. Segundo as respostas, 481 respondentes disseram que seu último projeto foi um sucesso e 119 disseram que falharam. 

Os números dos projetos que falharam são contundentes:

Agile Requirements Engineering (Engenharia de Requisitos Ágeis)

Projetos que utilizam Agile Requirements Engineering ou Engenharia de Requisitos Ágeis o que seria apenas uma parte dos Métodos Ágeis teve uma taxa de falha de 65% e um aumento de 268% de quando utilizava-se outra metodologia. O estudo fornece mais duas variáveis interessantes, a Estatística-T e o Valor-P. 

A Estatística-T, em uma forma simples seria o seguinte: Imagine que você tem uma nova receita de bolo e quer saber se ela realmente faz um bolo mais gostoso do que a receita tradicional que você usa. Você decide testar isso de forma científica. Você faz 10 bolos usando a receita nova e pede para 10 amigos darem uma nota de 0 a 10 para cada bolo. Depois, você faz 10 bolos usando a receita antiga e pede para os mesmos amigos darem notas novamente. Agora, você tem duas médias: uma média de notas para os bolos da receita nova e outra média para os bolos da receita antiga. Você quer saber se a diferença entre essas médias é grande o suficiente para concluir que a nova receita é realmente melhor, ou se a diferença pode ter ocorrido apenas por acaso.

No caso da Estatística-T, previsivelmente deu 4,94 o que é um valor alto o que é esperado já que há um aumento de 268%. Indica que a Engenharia de Requisitos Ágeis é 4,94 vezes pior se comparada ao método anterior, seja lá qual for.

O Valor-P, neste caso, é complementar. Se você oferecer as duas receitas de bolo para outros 10 amigos e repetir o processo várias vezes, ele nos ajuda a entender se a diferença observada é significativa ou poderia ser explicada pelo acaso. Valores-P abaixo de 0,05 indica que é improvável que as notas obtidas pelas receitas de bolos sejam ao acaso. Maiores do que 0,05 indicam que elas podem ocorrer ao acaso e não há evidências suficientes para determinar se uma receita é melhor do que a outra.

O uso mais famoso da Estatística-T e Valor-P são para testes de Hipótese Nula. Esse é um valor previamente definido que se não for atingido indica que a hipótese nula é a correta e o produto, método, serviço utilizado não produz mudanças significativas. Neste estudo é utilizado como números de comparação.

No caso, o Valor-P da pesquisa é 3,83E-5, ou 0,0000383. Esse número diz que se repetirmos o experimento, temos uma chance de 0,00383% de observar uma diferença tão extrema (ou maior) entre as médias devido ao acaso. Logo é estatisticamente significativo.

Lean Software Development (Desenvolvimento de Software Enxuto)

Há uma observação no estudo que afirma que os desenvolvedores respondestes trabalharam apenas em um projeto, não há paralelismo. Neste caso a taxa de falha é de 21%, um aumento de 7% se comparado ao método anterior. A Estatística-T é de 0,59 o que seria baixo e o Valor-P de 0,55. Isso significa que é estatisticamente inconclusivo, pois os dados não fornecem evidências suficientes para concluir se o método impacta ou não na taxa de falha.

Impact Engineering (Engenharia de Impacto)

Aqui também há uma observação que afirma: “Utilizando de todas as práticas de engenharia estudadas (provavelmente no Método Engenharia de Impacto) que aumentam as taxas de sucesso.”. Neste caso, a taxa de falha foi de 10%, na verdade representa uma redução de 56% de falhas (melhora em 56%). A Estatística-T é negativa, -4.15 o que é muito baixo. Utilizando a mesma lógica é como se esse método fosse 4,15 vezes melhor do que utilizar o método anterior. O Valor-P é 4,11E-5 ou 0,0000411 o que indica que não é um resultado ao acaso.

Analisando os resultados da pesquisa.

Existem outras informações na pesquisa que você pode achar no site da Engprax. Se olharmos para os resultados obtidos, diríamos que a Impact Engineering é realmente a solução dos problemas. Estamos falando de uma piora brutal utilizando métodos ágeis, de algo inconclusivo utilizando o Lean e uma solução que representa uma melhora de 56%. 

Os entrevistados

Entretanto, temos que olhar para as outras variáveis do texto. Primeiro a população utilizada na pesquisa. 600 desenvolvedores de software. Não há dados que poderíamos considerar importantes para a análise: Por exemplo, qual a relação deles com a Engprax, tamanho das empresas, tipos de projetos, eles acreditam que seus projetos foram realmente um fracasso ou um sucesso, sexo, anos de experiência profissional, setor em que a empresa atua etc. A única informação que temos é que são dos EUA e do Reino Unido e deduzo que uma boa parte deles conhece o Impact Engineering, pois confesso que foi a primeira vez que vi esse termo aparecer.

O critério

O critério de sucesso que foi utilizado é: entregar todo o escopo acordado dentro do prazo estabelecido. Foi aqui que me prendi. A falta de informação sobre os entrevistados já era ruim, o fato deles saberem de um método desconhecido também levanta suspeitas. Entretanto, afirmar que o sucesso de projetos é entregar 100% do escopo no prazo, aí eu percebi o problema com a premissa da pesquisa. Ela cobrou Métodos Ágeis e Lean por algo que ambos não entregam. Fazendo uma analogia, seria como eu dizer que o Peixe perde da Galinha porque não consegue voar 2 metros

Olhando para a minha vida profissional

Sinceramente, se tivessem me perguntado utilizando esse critério se os projetos que entrego são sucesso ou fracasso, eu seria a resposta 120 de fracasso. Por dois motivos, o primeiro é que eu digo muitos “nãos”. Muitas das vezes, tenho clientes mais difíceis e não aceitam o meu “não” e tem o poder político e hierárquico para forçar o “sim”. Eu não brigo e nem discuto. Coloco no backlog e lá na frente provo para ele que não precisa daquilo. 

Afinal, pedir é barato, quase de graça. Entregar o que o cliente precisa é uma arte que toda pessoa de produto leva um tempo para desenvolver. Logo, nunca, em mais de 25 anos de trabalho, jamais entreguei 100% do escopo solicitado e isso é uma coisa boa. Entregar tudo é custoso para você, seu cliente e seu time. No final será empregado muito esforço para pouco ou nenhum resultado tanto para o seu cliente quanto para a empresa.

Outro motivo é que se você trabalha com software, como é o caso dos entrevistados, você sabe que não cria projetos, você cria produtos e serviços. O meu produto mais antigo está no ar desde 2007. Esse “filho” mais velho tem 17 anos, mais velho do que a minha filha de verdade. Obviamente não concluímos um projeto em 2007 e largamos ele lá em produção. Ele vem sendo atualizado tanto na tecnologia quanto nas funcionalidades desde então.

Se for bem, bem sincero, o produto mais antigo que participei e ainda está no ar é do ano 2000. Não estou mais na empresa, mas ele ainda está lá firme e forte. As tecnologias que utilizei sequer rodam nos computadores modernos. Ele vem sendo mantido há 24 anos por outros desenvolvedores, resolvendo o problema para o qual ele foi construído.

Medindo o sucesso de projetos através das Métricas nas 4 Áreas de Domínio da Agilidade

O critério todo o escopo em todo o tempo é um critério pobre. Sempre analiso sucesso ou fracasso com métricas nos 4 Domínios. Não digo que tenho sucesso em tudo, pelo menos não quando eu e meus times gostaríamos, mas desde 2008, quando adotamos Métodos Ágeis, nunca mais recebemos reclamação de que não entregamos soluções que resolveram o problema do cliente no prazo que tínhamos. Mesmo quando o prazo era menor do que 2 semanas. Resolver o problema do cliente, mais do que entregar 100% do escopo. Vejamos a imagem abaixo:

Métricas nas 4 Áreas de Domínio da Agilidade para criação de Projetos, Produtos e : Negócio com as métricas de eficácia: Receita, Net Promoter Score,
Churn, RoI, Retenção e Aquisição. Cultural com as métricas de Ecossistema: Saúde do Time, Burnout, Satisfação com Trabalho, Eficácia do Feedback, Níveis de Delegação e Rotatividade
Organizacional com as métricas de eficiência: Customer Lead time, Taxa de Entrega, Tempo de Bloqueio, Vazão (Throughput), Work in Progress (WIP) e Custo e Prazo
Técnica com as métricas de Excelência: Reclamações, Devoluções, % Cobertura de Testes, % Automação do trabalho e% Padronização do trabalho
Métricas nas 4 Áreas de Domínio da Agilidade

Se quiser saber mais sobre as 4 Áreas de Domínio da Agilidade, clique aqui. Métricas de Eficácia estão: aqui, aqui, aqui e aqui. Métricas de Eficiência você pode encontrar aqui, aqui, aqui e aqui. Já as de Ecossistemas estão disponíveis também no nosso blog seguindo este link e este aqui também. Por fim, temos métricas de Excelência aqui.

Meu intuito aqui não é explicar os pormenores das métricas, mas como vocês podem ver: prazo é apenas um ponto dentro de uma das áreas. O estudo ignora todo o resto. Inclusive da própria área. 

Uma Onça caminhando sobre um rio

Nós da Nower / K21 afirmamos que a criação de projetos, produtos e serviços é como um animal de quatro patas, cada uma representando uma área da agilidade. Se você ignorar uma delas é o equivalente a quebrar uma das patas do animal. Ele anda, porém anda mancando. Por exemplo:

Se ignorarmos a área de Negócio, não temos eficácia. Então entregamos um produto no prazo, com qualidade, porém ninguém quer e ninguém usa.

Se ignorarmos os aspectos culturais, não criamos um ecossistema saudável. As pessoas criam produtos que os clientes querem de forma eficiente e com qualidade, porém se apagar a luz e jogar facas na sala, vai morrer gente. Com o tempo a rotatividade ficará alta e você não terá nem eficiência, nem eficácia e nem qualidade.

Se ignorarmos a eficiência organizacional podemos ter até uma solução de sucesso, mas o tempo que leva para entregarmos e adaptarmos às mudanças do ambiente será horrível. 

Se ignorarmos a excelência técnica, como diz o Rodrigo de Toledo, é igual a cuspir para cima e ficar em baixo esperando o cuspe voltar.

O estudo quebrou totalmente 3 patas e ainda machucou a 4ª utilizando um critério apenas.

Conclusão

Se você olhar para os seus projetos e sabe que 65% deles não falharam, não fique assustada ou assustado. Ainda não encontramos a nossa Bala de Prata. Essa pesquisa é o que na academia chamamos de Pesquisa de Autopromoção. Ela “demonstra” o “sucesso” do produto que a empresa vende em detrimento de outras, especialmente as líderes de mercado. São comuns em remédios de emagrecimento, perda de cabelo, aprendizado e outros. 

Na verdade, é um grande clickbait (isca de cliques) que funcionou. Causou um burburinho, várias pessoas replicaram, todavia algumas já fizeram a observação de que é uma Autopromoção. 

Não posso afirmar se o tal  Impact Engineering é bom ou ruim, pois não li o livro, mas confesso que a desonestidade científica já fez com que perdesse alguns pontos comigo. Soou como um falso profeta que anuncia o apocalipse iminente, mas ele já tem a solução para o problema.

Se quiser saber mais sobre essa mesma polêmica, dê uma olhada no artigo do Marcos Garrido: Projetos com Agilidade teriam 268% mais chance de falhar. Será?

Avelino segurando um microfone e uma camiseta preta escrita Agile. Ele é pardo, barba e cabelos grisalhos.

Sobre o autor(a)

Trainer na K21

Avelino Ferreira é formado e mestre em Ciência da Computação. Teve uma longa trajetória na TI, começando como programador e chegando a gestor de diversos times de criação de produtos digitais. Conheceu e começou a adotar as melhores prática de de Métodos Ágeis em 2008. Desde então, se dedica a auxiliar outras empresas na construção da cultura ágil. Atualmente, é Consultor e Trainer na K21

Artigos relacionados

Avelino segurando um microfone e uma camiseta preta escrita Agile. Ele é pardo, barba e cabelos grisalhos.

Uma das práticas mais conhecidas do Método de gestão de fluxo de trabalho Kanban é a definição do limite de WIP. Neste artigo escrevo porque você deve utilizá-lo, o que ele é e como você pode defini-lo. O limite de…

Avelino segurando um microfone e uma camiseta preta escrita Agile. Ele é pardo, barba e cabelos grisalhos.

O Kanban possui um guia de práticas muito interessante, que facilita a gestão do fluxo de uma equipe ou empresa. O nome dele é Kanban Maturity Model (Modelo de Maturidade do Kanban) ou KMM para os íntimos. Ele é um…

Avelino segurando um microfone e uma camiseta preta escrita Agile. Ele é pardo, barba e cabelos grisalhos.

Imagine que você resolveu tirar um dia para dar aquela geral na casa. Você decidiu que vai varrer e limpar todos os cômodos, dar aquela embelezada no carro e arrumar o jardim. A princípio tudo faz parte do grande serviço:…

Avelino segurando um microfone e uma camiseta preta escrita Agile. Ele é pardo, barba e cabelos grisalhos.

Muitos não sabem, mas kanban não é o quadro de mapeamento de fluxo de trabalho. Na verdade, traduzindo do japonês, 看板 (kanban) significa placa de sinalização. Se fossemos muito puritanos, ao invés de dizer que temos um quadro kanban, o…