Navegando Pelos Vieses Cognitivos: Uma Experiência de Ascenção, queda e Aprendizado na Construção de Produtos

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Há algum tempo tenho estudado sobre vieses cognitivos e como eles impactam nossos produtos e serviços. Gostaria de contar uma história pessoal de como fui afetado por eles em um produto que desenvolvi há algum tempo. Puxa uma cadeira, pega um café e sente que lá vem a história. 

O ano é 2019 e estou retornando ao TRE-RJ após uma licença sem vencimentos de dois anos em que trabalhei exclusivamente para a K21. A primeira coisa que pediram foi para eu atuar em um projeto que construiria consultas para que qualquer pessoa da Justiça Eleitoral em qualquer parte do Brasil soubesse exatamente o que a informática do RJ estava construindo, implantando ou evoluindo. 

Por algum motivo um tanto irracional, tenho que confessar, coloquei esse projeto como se fosse a salvação da minha carreira. Ignorando os outros 10 anos que já havia passado no TRE-RJ e o fato de não haver absolutamente ninguém duvidando das minhas capacidades. Mergulhei de cabeça e queria muito, muito que tudo desse certo. 

Entretanto naquela época já havia ferramentas como Qlik e Metabase que poderiam resolver o problema de forma bem melhor do que eu queria. Provavelmente em alguns poucos dias. Porém, como responsável pelo projeto, queria mostrar o meu valor. Uma espécie de: “vejam o quanto vocês perderam enquanto eu não estive aqui”. Com isso, bolei um produto supercomplexo que precisava de semanas de desenvolvimento. Talvez as semanas de desenvolvimento não pareçam muito, mas estamos falando em aumentar quase 15 vezes o tempo necessário para a construção da solução. Leve em consideração que eu era o professor de Métricas Ágeis e calcular retorno, lead time, vazão era a minha área enquanto consultor.

Viés da Superioridade Ilusória

Viés da Superioridade Ilusória. Um gato olhando para um espelho e o espelho reflete um leão.

O livro de Dan Ariely, Previsivelmente Irracional, define esse viés como Superioridade Ilusória. É um gatilho que nós temos em acreditar tudo o que temos e tudo o que fazemos é melhor do que outras pessoas. Meus filhos são melhores que os dos outros, meu casamento é mais forte, eu sou mais honesto, meu trabalho é melhor e por aí vai. Responda com sinceridade, em voz baixa, para não provocar a discórdia onde você estiver. Há algum aspecto subjetivo da sua vida que você ache que é melhor do que outros? Relacionamentos, emprego, família, fé, amigos, vida acadêmica e social, política? É provável que tenha. Porém como estamos falando de algo subjetivo, também é possível que você esteja sofrendo do Viés da Superioridade Ilusória.

Voltando ao meu projeto, era o que acontecia. Eu me sentia como O Cara em termos de entender o funcionamento da construção de produtos digitais do TRE-RJ (apesar do meu afastamento). Ninguém, nem as ferramentas mais parrudas no mercado eram capazes de resolver o problema de uma forma melhor do que eu havia imaginado. Então, sem perceber que estava sendo impactado por esse viés, arregacei as mangas e vamos à luta.

Viés de Associação por Prestígio ou Efeito Halo

Viés de Associação por Prestígio ou Efeito Halo. Um homem em um pedestal.

Após me tornar responsável pelo novo produto, eu precisava fazer com que as pessoas embarcassem no projeto e foi aí que o Viés de Associação por Prestígio ou, no seu nome mais famoso, Efeito Halo entrou em cena. Eu já comentei sobre o Efeito Halo no artigo: Viés cognitivo: 3 erros que cometemos contratando, promovendo e demitindo pessoas no nosso time. Sendo bem sucinto, ele fala sobre como costumamos tomar decisões com base em pouquíssimas informações.

Antes de sair do TRE-RJ para minha licença, eu era o Gerente de Desenvolvimento de Software, fiquei dois anos atuando diretamente numa das melhores consultorias de Transformação de Negócios do Brasil. Com ela atuei desde Manaus até Porto Alegre e EUA. De alguma forma, as pessoas viram a imagem de alguém que era muito capacitado para o projeto. A pessoa certa. O cara que sabia o que estava fazendo.

Na verdade, elas deveriam ter olhado para o cara que estava longe há muito tempo, não havia participado das últimas eleições (marco importante para Justiça Eleitoral) e não era o responsável por um produto há muito mais tempo. Lembre-se, eu era gestor antes de trabalhar integralmente na K21, cuidava dos times, mas não me envolvia no dia a dia.

Entretanto, esse fato foi ignorado e as pessoas embarcaram na minha ideia.

Viés da Complexidade ou Complexificação Excessiva

Viés da Complexidade ou Complexificação Excessiva. Uma cabeça com muitos cabos dentro dela representando a complexidade.

Esse é um viés comum. Ele acontece quando tendemos a dar uma resposta excessivamente complexa que poderia ter sido resolvida com algo bem mais simples. Nós gostamos da complexidade excessiva, pois ela nos ajuda a imaginar que somos mais espertos e sagazes do que a maioria das pessoas. 

Pense bem, se você no seu trabalho já fez algo muito complexo. Pode ser uma planilha em Excel que tem fórmulas do arco da velha. Ou você é um desenvolvedor de software e criou um código que voltou alguns meses depois e falou: “Quem foi o desgraçado que fez isso? Ah é! Fui eu.”. É natural, nós tendemos à complexidade. Foi por isso que Guilherme de Ockham (1288–1347) criou o princípio da parcimônia ou como ficou mais conhecido, A Navalha de Ockham. Ele postula que dentre as múltiplas soluções adequadas e possíveis para um problema, deve-se optar pela mais simples delas.

Esse trinômio Adequado, Possível e Simples passou longe do meu projeto. Eu tinha que provar que “eu havia voltado” e fazer coisas do arco da velha era essencial. Frameworks e mais frameworks, bibliotecas, tudo que estava disponível deveria ser utilizado. Toda estatística deveria ser extraída e o melhor produto do mundo construído.

Viés de Custo Afundado ou Falácia do Custo Irrecuperável

Viés de Custo Afundado ou Falácia do Custo Irrecuperável. Um monte de dinheiro debaixo d'água com um navio afundado.

Alguns meses após o início do projeto (veja que inicialmente eram semanas), todos nós, no fundo no fundo sabíamos que o produto já estava fadado à ruína. Complicado de desenvolver, complicado de manter e difícil de mostrar algum resultado. Todavia, nós já havíamos gasto muito tempo, algum dinheiro e bastante esforço na criação. Logo, nosso cérebro ficava tentando achar algum bom motivo para continuarmos com o projeto, embora, na verdade, sabíamos que não existia. 

O Viés de Custo Afundado é exatamente isso. Quando já investimos tempo, esforço e dinheiro em algo que sabemos que não trará nenhum bom resultado e mesmo assim insistimos em fazer porque queremos evitar o sentimento de perda. Provavelmente você já passou por isso em algum projeto no seu trabalho. Pode ainda ter experimentado isso enquanto você lia um livro que lá pela metade perdeu interesse. Ou naquela série que teve as três primeiras temporadas incríveis, porém as três seguintes foram horríveis e você continuou assistindo.

Nosso cérebro é programado para não perder. Não gostamos de perder e queremos não perder mesmo quando tudo já foi perdido. 

Viés de Confirmação

Viés de Confirmação. Uma mulher segurando o número 3, diversas pessoas aplaudindo. Todavia há diversos números caídos no chão e sendo ignorados.

O Viés de Confirmação é um par, quase irmão do Viés de Custo Afundado. Ele acontece quando as pessoas procuram, interpretam e lembram de informações de maneira que confirmem suas crenças ou hipóteses preexistentes, enquanto ignoram ou descartam evidências que contradizem essas crenças.

Durante o projeto nós nos agarramos aos pequenos fatos que comprovavam nossas crenças: a) quando ficar pronto trará total transparência à criação de produtos pela TI; b) visualizações de informações estão ficando incríveis; c) consultas com diversas subconsultas mostrando que essas ferramentas não resolveriam de forma tão fácil.

O que acontecia na verdade: a) A pergunta que o produto deveria responder era: Quando é que meu produto / serviço será desenvolvido? b) Não precisava de visualização extravagante; c) Já era para ter respondido há meses. 

Viés de Compromisso Cognitivo ou Compromisso com a Primeira Resposta

Viés de Compromisso Cognitivo ou Compromisso com a Primeira Resposta. Um homem casando com uma estátua.

É o momento em que o último viés desse texto aparece. O Viés de Compromisso Cognitivo. Ele a tendência de nos apegarmos a nossas suposições ou decisões iniciais, mesmo quando confrontadas com evidências que as contradizem. Esse viés mostra o quanto tendemos a preservar nossas posições e nossas crenças, mesmo que tudo aponte para o lado errado. 

E como uma pessoa que adora métricas, todas elas mostravam que estávamos navegando em direção às pedras e eu era o capitão desse barco. Para ser bem sincero acredito que o barco já estava afundando.

Stop the Line!

Já era claro que o produto era inviável e com o ego ferido, dei a ordem para parar o desenvolvimento. Fizemos duas consultas em Metabase que levaram dois dias entre construção, avaliação e adaptação e pronto. Todos os interessados (stakeholders) ficaram satisfeitos. 

Vou ser sincero com você. É um tanto doloroso fazer isso, mas necessário. Gostaria de ter parado enquanto ainda estávamos nos primeiros momentos de construção, mas não o fiz. 

Aprendizado

Ficou o aprendizado: Seja humilde e objetivo. Nunca subestime a influência dos vieses cognitivos e esteja sempre atento para reconhecê-los em si mesmo e nos outros. É fundamental ser humilde para admitir quando algo não está funcionando e estar disposto a mudar de curso, mesmo que isso signifique abandonar um projeto no qual você investiu tempo, esforço, dinheiro, suor e lágrimas. Esteja aberto a considerar diferentes perspectivas e evidências, e não se prenda a uma ideia apenas porque você a propôs. Priorize resultados sobre o desejo de provar seu próprio valor ou habilidade.

Espero vê-los em breve para mais um caso da vida 😀.

Avelino segurando um microfone e uma camiseta preta escrita Agile. Ele é pardo, barba e cabelos grisalhos.

Sobre o autor(a)

Trainer na K21

Avelino Ferreira é formado e mestre em Ciência da Computação. Teve uma longa trajetória na TI, começando como programador e chegando a gestor de diversos times de criação de produtos digitais. Conheceu e começou a adotar as melhores prática de de Métodos Ágeis em 2008. Desde então, se dedica a auxiliar outras empresas na construção da cultura ágil. Atualmente, é Consultor e Trainer na K21

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