Viés, Ruído e Armadilhas do Sistema

Após terminar de ler o livro Ruído de Daniel Kahneman, decidi reler alguns clássicos que não olhava há algum tempo. Dentre eles, Rápido e Devagar do mesmo autor e Pensando em Sistemas de Daniela Meadows. Não pude deixar de perceber que há certas semelhanças entre essas três obras. A mais importante é que todas falam de problemas que enfrentamos na tomada de decisões. Embora cada livro discuta mais ou menos os conceitos semelhantes, os três acabam focando em um assunto mais específico do que outros. Em Rápido e Devagar focam nos vies (bias); Ruído, obviamente o ruído; e Pensando em Sistemas está mais ligado às armadilhas do sistema. Vamos falar sobre cada um deles.   

Tl;dr; *   

Podemos resumir os conceitos assim: Vieses acontecem quando nós criamos um conceito através dos atalhos mentais que o nosso cérebro toma quando tratamos um assunto. Ruído acontece quando as pessoas envolvidas em uma decisão utilizam pressupostos, métricas e valores distintos e chegam a resultados totalmente dissonantes mesmo que estejam no mesmo contexto. Armadilhas do sistema é quando as pessoas recebem estímulos individuais ou coletivos que deveriam beneficiar o sistema, porém, quando colocado em prática, acaba o deteriorando. 

 Nas sessões abaixo, vou explicar melhor cada um deles e dar alguns exemplos de quando acontecem. 

 Vieses  

Os vieses, mais especificamente os vieses cognitivos acontecem quando formamos em nossas mentes um conceito sobre algum assunto. Nosso cérebro cria padrões de pensamento sistematicamente desviados que podem afetar o julgamento e a tomada de decisões. É como se ele escolhesse atalhos mentais (heurísticas) para simplificar o processamento de informações, mas que podem levar a erros. 

 Por exemplo, digamos que você e o seu time tenham sido incumbidos de fazer um projeto. Passados alguns meses vocês mergulhados nesse trabalho todos passam a crer que esse é o melhor projeto de todos os tempos. Mesmo quando são apresentados dados contrários, mostrando que o produto é um fracasso, esse time ignora os dados contrários e se apega às poucas informações que dizem que o projeto está indo bem. 

 Busca seletiva de informações, interpretação tendenciosa, favoritismo na lembrança, desconsideração de dados contraditórios. Estamos diante de um Viés de Confirmação que está atacando você e seu time.  

 Ruído

Acontecem quando as informações que temos estão tão fragmentadas que tomamos decisões diferentes até em situações idênticas. Essa fragmentação insere uma variabilidade indesejada nas decisões que deveriam ser idênticas. Ao contrário dos vieses, que são tendências sistemáticas, o ruído é a inconsistência aleatória e imprevisível. 

 Exemplo clássico seu time tem um projeto para fazer hoje. Ele é muito, muito parecido com um projeto que vocês fizeram há seis meses. Você pergunta para os membros do time. Quando fica pronto? Se o time tem 10 pessoas, é provável que você tenha no mínimo 10 respostas diferentes. E o pior, elas podem ter uma variação de dias ou até meses. 

 Por que isso acontece? Embora todas as pessoas envolvidas tenham experimentado e observado mais ou menos as mesmas situações durante o projeto, elas têm recordações distintas dessas situações. Algumas vão se recordar de eventos mais tensos, outras dos erros que comentaram e outras das conquistas que tiveram e todas rememorarão com intensidade diferentes.  

 Isso já é o suficiente para introduzir muitos ruídos, mas pode piorar. Elas viveram mais seis meses após o término daquele projeto. Tiveram experiências diferentes tanto profissional como pessoal nos últimos meses. Isso introduz ruído na decisão. Até mesmo ruídos ocasionais como a derrota do time de futebol, filhos doentes, compra frustrada de algum bem, podem introduzir ruídos em um momento de decisão.  

 Armadilhas do Sistema 

 Por fim, temos as armadilhas do sistema. Elas são padrões que ocorrem na forma de comportamentos recorrentes em sistemas complexos (time, squad, empresa, sociedade, família) e produz resultados indesejáveis. Tais armadilhas surgem quando diferentes pessoas estão interagindo dentro de um sistema. 

 Vou contar um caso de armadilha do sistema que vivenciei enquanto atuava como consultor. Obviamente, manterei o nome do cliente anônimo. Basta saber que era uma empresa com dezenas de times que construíram serviços digitais. Essa empresa tinha um lema: “nice guys don’t survive” (caras legais não sobrevivem, em tradução livre). A diretoria (C-Level) brigavam entre si judicialmente. Erros punidos com demissões. A quantidade de dependências externas que cada time tinha era gigantesca o que retardava e por vezes impedia lançamentos e atualizações de produtos e serviços. Além disso, os membros dos times respondiam a diferentes gerentes funcionais. 

 Um serviço chamou a atenção da nossa equipe de consultores logo no início. Ele parecia deslocado e seu pitch não era lá muito convincente. Pedimos os resultados do serviço para ver o que estava acontecendo. Foi quando soou o primeiro alerta. Ninguém mostrava os resultados. Nós perguntávamos se eles tinham as métricas e a resposta era sempre positiva. Nós perguntamos onde elas estavam e respondiam: “estamos preparando”. 

 Quando finalmente as métricas apareceram, soou o segundo sinal de alerta. Os números eram previsões de resultado para os próximos trimestres. Bacana, mas o serviço já estava no ar há mais de dois trimestres. Sendo assim, já deveria ter números concretos além das previsões. Sinal de alerta três: “ahhh, mas esses números são difíceis de obter”. Meu amigo, você já viu time de futebol esconder troféu de campeonato? Nem eu.  

 Resumindo a história, finalmente conseguimos os números e ficou claro que as previsões eram uma feijoada de vento cozinhada com nada. Bem ilusórias se comparadas com a realidade. Mostramos os números para os envolvidos e para a nossa surpresa, ninguém se surpreendeu. Todos sabiam que o serviço era um fracasso retumbante. 

 Nossa pergunta foi: se todos sabem que o serviço é ruim, se todos sabem que ele não tem futuro, se todos sabem que ele só deu e só dará prejuízo, por que o tratam como se fosse a oitava maravilha da terra e continuam colocando dinheiro nisso? Veja que os vieses cognitivos não podem explicar esse fenômeno, pois todos os envolvidos têm plena consciência de que as coisas vão mal e tendem a piorar. Também não era um ruído, pois todos os envolvidos conheciam os mesmos números e tinham a mesma perspectiva. Ninguém negava a verdade, apenas, por algum motivo, preferiram ignorá-la. 

 Entenda a perspectiva dos envolvidos:  

  • Time. Sabendo que demissões são comuns na empresa e erros não costumam ser tolerados. Não queria dizer que estava trabalhando 1,5 anos em algo que dá prejuízo.  
  • Gerente de Serviço. Como não matou o projeto no início, seria a primeira cabeça a ser cortada. O objetivo era manter o emprego até outra oportunidade aparecer.  
  • Gerentes funcionais. Cada um respondia a um diretor que ia querer saber por que eles mantiveram pessoas alocadas tanto tempo nesse serviço. 
  • Diretor. Imagina que ele foi em uma reunião de diretoria (board), apresentou o projeto, brigou pelo orçamento. Imagina se ele tem que chegar nos seus pares e dizer: “foi mal”. 

 A armadilha do sistema estava armada. Cada componente tinha seu objetivo particular e sua agenda. Juntos pioraram a situação que já era ruim. A tragédia dos comuns. Cada um vendo seu interesse e ajudando a colapsar o sistema. Quando uma pessoa-chave saiu da empresa, tudo desmoronou como um castelo de cartas e três meses depois o serviço foi encerrado. Não sem mais prejuízo, pois os clientes que tinham aderido a ele teriam que ser realocados ou ressarcidos. 

Conclusão 

Todos estamos sujeitos a vieses, ruídos e armadilhas. Infelizmente não somos máquinas perfeitas e coisas ruins podem influenciar nossas decisões. O que podemos fazer? Ter métricas e balanceá-las de acordo com os 4 Domínios das Métricas. Ter consciência de que mesmo com elas, podemos estar sofrendo de algum desses aspectos que atrapalham a decisão. Conversar com os componentes do sistema é importante. Se possível com pessoas externas que estão menos envolvidas com a decisão. Ter um ambiente de transparência é de extrema relevância. Além de ter consciência que erros acontecem não importa quanto tentemos evitá-los e, por fim, construa produtos e serviços através de ciclos curtos para evitar erros catastróficos.  

 Espero que tenha curtido. arrivederci

 * Tl;dr é uma sigla em inglês que significa: too long; didn’t read. Longo demais; não li. É uma brincadeira que começou quando as pessoas mandavam textos enormes de várias páginas e o que realmente importava estava escrito em poucas linhas. Com o tempo, as pessoas começaram a utilizar o Tl;dr para dizer que a mensagem estava muito grande e elas não leram. Passado mais alguns anos, tornou-se um sinônimo para resumo do texto com o detalhamento vindo a seguir.

Avelino segurando um microfone e uma camiseta preta escrita Agile. Ele é pardo, barba e cabelos grisalhos.

Sobre o autor(a)

Trainer na K21

Avelino Ferreira é formado e mestre em Ciência da Computação. Teve uma longa trajetória na TI, começando como programador e chegando a gestor de diversos times de criação de produtos digitais. Conheceu e começou a adotar as melhores prática de de Métodos Ágeis em 2008. Desde então, se dedica a auxiliar outras empresas na construção da cultura ágil. Atualmente, é Consultor e Trainer na K21

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