Imagine uma pessoa com uma vida sedentária, alimentação nociva e que já briga com espelho e roupas há algum tempo. Ela decidiu que vai dar uma guinada na vida e ter um estilo mais saudável. Toda empolgada, ela vai na academia e faz a matrícula. Em seguida, vai para a loja e compra uma roupa para academia e um tênis igual do Usain Bolt ou da Elaine Thompson. No dia seguinte, a empolgação acaba. A provocação que eu faço é: ela ficou mais saudável? Essa é uma transformação de fachada. Parece que houve uma mudança, mas não atingimos o resultado porque não mudamos nada de fato.
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Water-Scrum-fall é um tipo de transformação de fachada. Ouvi essa expressão pela primeira vez com Jez Humble (escritor do livro Entrega Contínua) durante o Goto 2015. Segundo o escritor, uma grande parte da empresa acaba adotando o Scrum apenas em uma parte da cadeia de valor, mas mantém os métodos tradicionais em todo o resto. Acabam com um sanduíche, um pouco melhor que 100% cascata, mas que não aproveita 10% dos Métodos Ágeis.
Water-Scrum-fall na prática
Um exemplo prático é quando o time de desenvolvimento recebe o escopo fechado de um produto pensado por algum stakeholder “dotado de grande inteligência” que conhece exatamente todas as necessidades do consumidor e já prevê todas as mudanças do mercado até o dia da entrega (Veja o artigo Escopo Fechado, a ilusão e a palestra Gestão de Portfólio Tradicional, um Castelo de Mentiras). Essa é a primeira parte cascata.
Perceba que quando isso acontece, perdemos a principal vantagem dos métodos ágeis que é a capacidade de adaptação às mudanças de clientes, negócio ou mercado.
Uma vez que o time já tem o escopo que foi “totalmente” pensado no início, ele utiliza o Scrum ou outro Método Ágil para desenvolver o produto em ciclos curtos apresentando, periodicamente, para os stakeholders. Essa foi a parte ágil da história, pois esse time não pode colocar nada na mão do consumidor final.
Para que o produto chegue na mão do cliente, agora teremos que buscar permissões. Algumas são importantes e essenciais como licenças ambientais ou autorizações de órgãos reguladores. Na maioria das vezes não é o caso. A burocracia é criada por alguma falha do passado. Ao invés de procurar a causa raiz do problema e resolvê-lo de forma sistêmica, geralmente buscamos (e punimos) culpados e transferimos a responsabilidade para instâncias superiores ou outros times. “Para colocar esse produto no mercado precisamos de uma autorização do diretor X (que até o momento nem sabia que o produto estava sendo desenvolvido)”.
A burocracia é a filha do medo e o medo paralisa
Se você está no mercado há algum tempo, já sabe que nem tudo acontece de uma forma tão bela como contado na faculdade, MBAs ou cursos de aperfeiçoamento. Provavelmente, você já tomou algumas pancadas e já foi caçado em uma busca por culpados. Todos passamos por isso e ficamos temerosos com o nosso futuro profissional e, obviamente, pessoal.
Com esse histórico, por questão de sobrevivência no mercado, nossa tendência é “compartilhar” responsabilidades. O problema é que esse mecanismo de defesa está presente no cérebro de muitas pessoas que trabalham com você.
Começamos a ter um pensamento de aversão total ao risco. Todos os erros devem ser pensados previamente, evitados a qualquer custo e devemos ter um processo lotado de fluxos, descrições e autorizações que se tornam tão complexos que não cabem em uma folha A4.
Todavia, erro é igual a resfriado. Quando menos se espera… Atchim! e 38,5°C de febre. Ao invés de termos um processo real de melhoria contínua, caímos no ciclo vicioso de pioria contínua: erro, busca por culpados, punição, burocracia.
A burocracia tende a aumentar até o infinito
Vou dar uma saída do contexto empresarial para um exemplo pessoal. Eu pratico uma fé que possui um cânone principal. A princípio, todos deveriam seguir esse cânone e nada fora do cânone deveria intervir na vida dos praticantes da fé. Todavia, isso não impediu que ao longo dos anos muitos criassem suas “regras”: roupas que os fiéis devem vestir, que tipo de maquiagem e ornamentações são aceitas, quais programas de televisão podem ser vistos, quais músicas podem ser ouvidas, etc. Alguém tem uma ideia, cria uma regra, outra pessoa tem outra ideia e cria outra regra e por aí vai. Com o tempo são tantas que torna praticamente impossível que uma pessoa siga aquela fé sem burlar alguma das regras extra cânone. Sentimento de culpa, abandono e rebeldia acabam sendo comuns para as denominações que caem nesse equívoco.
As empresas acabam com um comportamento semelhante. Criamos processos tão complexos que torna a coisa tão morosa que nada é entregue na mão do cliente. Quando entregamos, a necessidade já foi atendida por 10 startups diferentes e perdemos uma fatia imensa do mercado.
Além disso, como temos que começar a correr no final, nosso produto chega cheio de problemas na mão do consumidor. Os antigos SACs (Serviço de Atendimento ao Cliente) acabam substituídos por redes sociais como Facebook, WhatsApp, Instagram e Twitter e essas redes não perdoam ninguém. Estão fora do controle da empresa. As reclamações tornam-se públicas (recomendo assistir ao documentário Fyre Festival fiasco no caribe para compreender o poder que as redes sociais possuem hoje).
Quanto mais falhamos, mais criamos processos para evitar falhas e quanto mais complexidade inserimos no sistema, mais falhamos.
Sala de guerra
Quando a complexidade fica muito alta e o prazo muito curto, chega a hora da rebeldia. Vamos formar uma Sala de Guerra ou Sala de Crise. Agora, podemos criar um time multidisciplinar e jogar toda complexidade processual pela janela porque o “bicho tá pegando”. Acabou a burocracia, porém a pressão é imensa. Salas de Guerra são conhecidas pelas suas horas-extras, pessoas “surtando”, atualizações de currículo, finais de semana perdidos, 18 horas de trabalho por dia, entre outros.
Fica a questão: por que quando estamos no limite, podemos ter times realmente multidisciplinares e os processos que eram até então importantes, podem ser descartados?
“Senhores, vocês não podem brigar aqui. Isso é uma sala de guerra!”
Cena do filme Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb
Saindo do imbróglio
Pense sempre que a Transformação Ágil é uma transformação que deve acontecer nos Quatro Domínios da Agilidade.
Organizacional
Sim! Para termos uma transformação ágil é fundamental que tenhamos uma mudança na organização. Novos papéis serão criados e alguns serão desfeitos. Devemos procurar ter os times mais multidisciplinares possíveis com todas as especialidades necessárias para que eles possam participar desde a concepção, entrega para o consumidor final e acompanhamento de resultados. Isso pode ser uma quebra significativa na costumeira hierarquia de especialistas (silos) que temos nas empresas.
Além disso, temos que rever o fluxo de trabalho e processos. É comum nesse momento que as pessoas pensem da seguinte forma: tenho todos esses processos, vamos ver quais os mais adequados para esse time que agora é multidisciplinar. Como temos muita burocracia, dá uma preguiça enorme rever todos os processos. Gosto de começar com a pergunta oposta: agora que temos esse time multidisciplinar, quais são os processos essenciais para ele funcionar? Adicionar é mais fácil do que remover.
Quanto mais processos, mais complexidade. Gosto de utilizar um quadro na parede que mostra todo o fluxo de valor desde a formulação de ideias até o acompanhamento do resultado. Quanto mais etapas, maior ele fica e isso causa um impacto nas pessoas e começam os questionamentos sobre a complexidade do sistema.
Além disso, mantenha sempre atualizada as suas métricas de eficiência para saber qual o impacto da burocracia dentro do seu sistema.
Todavia, tenha muita atenção com as mudanças organizacionais. Não espere que ela aconteça do dia para a noite. Podemos criar um ponto de ruptura nos envolvidos que bloqueará qualquer transformação. Se a empresa não estiver em uma situação periclitante, prefira uma abordagem mais evolucionária. No final, o que queremos é a “Sala de Guerra” constante, mas sem a pressão. Começar o projeto desde o início com as habilidades necessárias e com um conjunto mínimo de burocracia. Antes de adicionar um novo processo, pense: podemos automatizar isso? Isso é uma falta de competência ou autorização? O que devemos fazer para ganhar a confiança da pessoa que está solicitando um novo processo?
Negócio
Sem o envolvimento, transparência e participação das pessoas de negócio, toda mudança ficará pautada em sentimentos e isso não é sustentável no médio-longo prazo. Pessoas de negócio e times de construção devem trabalhar JUNTOS. Primeiro para que todos entendam o que é valor para o consumidor e para a empresa e segundo para que todos os envolvidos busquem esse valor.
Além de trabalhar juntos, ter as métricas de eficácia é mandatório. Quantos clientes ganhamos com a última entrega? Qual o nosso ticket médio? Qual o nível de satisfação do nosso cliente? Como estão nossos concorrentes? É imperativo que o time entenda qual o problema de negócio que eles estão tentando resolver e o contexto em que ele está inserido. Com isso eles poderão contribuir com novas e melhores ideias sem filtros de intermediários.
Cultural
Chamar o Departamento de TI de Squad e esperar que isso o torne um time é tão eficaz quanto chamar alguém de Gisele Bündchen e esperar que ela fique bonita ou chamar o seu time de peladeiros de final de semana de Barcelona e esperar que se torne tal.
A cultura é fundamental em qualquer transformação. No caso da transformação ágil é o primeiro passo. Queremos times multidisciplinares, auto-organizados, auto-gerenciados e que façam a melhoria contínua deles próprios e da organização como um todo.
Isso não é algo que acontece com um estalar de dedos. Temos que auxiliá-los na transformação e pensar sempre de forma estratégica. Gosto de provocar coaches e Scrum Master com as seguintes perguntas: quais foram os erros que cometemos e o que aprendemos com eles? Qual a movimentação mais importante que eu posso fazer hoje que ajudará o meu time/empresa a ter resultados melhores (eficácia e eficiência)? Como faço para divulgar ações com resultados positivos? As primeiras perguntas estão relacionadas com ações para a mudança cultural de forma estratégica. A última eu gosto da analogia da Sonia Moreira que foi minha gestora: galinha que não cacareja, não botou ovo.
Técnico
Ao invés de criar camadas complexas para “evitar” erros, que tal automatizar o trabalho? Uma vez o Rodrigo de Toledo durante uma sessão de coaching disse a seguinte frase: “antes de colocar mais uma pessoa no processo, dê um passo de automação.” Você só coloca alguém no processo depois de ter tentado automatizar uma boa parte dele, pois isso evita erros na causa raiz e agiliza a entrega.
Além disso, é muito importante que a qualidade jamais seja “delargada” para a mão de uma pessoa ou equipe específica. A garantia da qualidade do produto é obrigação de todos os membros do time. Sem exceção (Veja o artigo Está pronto, só falta testar).
Conclusão
Fuja da agilidade de fachada. Se for para transformar, vamos transformar. Ficar em cima do muro por muito tempo cansa, é dolorido e insustentável. Mude a cultura e acompanhe com métricas a real evolução da sua empresa.
Abaixo recomendo alguns dos nossos treinamentos e leituras do nosso blog.
Quer saber mais sobre:
Cultura necessária para a transformação ágil
Treinamentos: Certified Scrum Master (CSM), Management 3.0 e Técnicas Ágeis de Facilitação
Artigos: Melhoria Contínua: a dor de hoje é o êxito de amanhã, Humanos sim, Recursos não! e Quer aumentar a produtividade da empresa? Dê folgas!
Como lidar com processos de forma ágil
Treinamentos: Certified Scrum Master (CSM) e Kanban Management Professional I e II
Artigos: O que é STATIK? Dicas para começar a aplicar o método Kanban!, Silos: visualizando e tratando as dependências do time e 5 dicas do criador do Kanban.
Envolvimento das pessoas de negócio e como elas devem lidar com produtos
Treinamentos: Certified Scrum Product Owner (CSPO)
Artigos: Product Owner: descobrindo o papel do PO, Eu acho que… Os riscos do achismo em projetos e Pensando produto e evitando armadilhas.
Como medir a eficácia do seu produto, a eficiência, atmosfera e qualidade do seu time
Treinamentos: Métricas Ágeis para produtos, times e organizações
Artigos:Métricas – Como medir a agilidade do seu time, 6 dicas para definir métricas de sucesso para seu produto e Métricas Tóxicas: o que você não deve usar