A Flexibilidade do pensamento enxuto.
Quando falamos hoje em Métodos ou frameworks Ágeis (ainda que foquemos nos mais conhecidos Kanban e Scrum), sempre acabamos nos atendo mais (ou somente) a empresas de tecnologia ou desenvolvimento de software. Não deveríamos!
Ok, entendo que este viés mental seja reflexo de um comportamento de mercado ainda muito presente: o uso do Lean Thinking permanece fortemente concentrado nos setores de Tecnologia da Informação, ainda que não sejam eles o core business das empresas.
Sem citar marcas, você vê várias Companhias (de varejo, financeiras, de produção audiovisual) adotando a Agilidade.
Mas, ao olhar de perto, você descobre que a mentalidade ágil ficou apenas dentro dos grupos que cuidam dos aplicativos de celular ou plataformas de streaming, áreas de suporte à atividade raiz daquele negócio.
Os demais departamentos – que muito se beneficiariam com a mudança – permanecem com a cultura antiga.
Mas, por que? Talvez por tais métodos serem mais difundidos no meio de TI, com muito mais casos de sucesso registrados na literatura.
Ou porque TI tenha, por natureza, uma abertura maior ao novo.
Ou só porque, “como meu concorrente usa, eu também quero, pra não ficar pra trás”.
Agora, numa rápida pesquisa sobre suas origens, descobrimos que os princípios da Cultura Ágil não nasceram na TI. Portanto, não só não são monopólio de programadores, como seu uso jamais foi pensado para ficar restrito a só e somente só desenvolvimento de software.
Quer exemplos? Dentre vários que temos na cartola, permita-me trazer um mais detalhadamente: O uso de Scrum em restaurante.
Muito prazer, Edu Santoro!
Antes, um pequeno background: fui produtor de eventos e cinema por 30 anos, e sempre apaixonado por Métodos Ágeis e a flexibilidade com que esta linha de pensamento se adapta (e beneficia) a qualquer segmento.
Já utilizei para virtualmente tudo: pesquisas de locação para filmagens, produção de novelas, séries e shows, projetos de visitas a indústrias e minas de minério de ferro.
Inclusive em minha rotina pessoal diária, assim como minha esposa e meu filho de 9 anos.
Fui convidado em setembro de 2017 por um restaurante situado na Lapa, Rio de Janeiro, especializado em espumantes brasileiros – o que fazemos de melhor – para gerenciar a produção dos eventos de fim de ano das empresas com escritórios no centro do Rio.
De imediato, já pude usar Kanban como gestor visual dos diversos eventos que realizamos ao longo dos dois últimos meses daquele ano (80 ao todo), além dos eventos que (a reboque dos que fizemos em dezembro) foram sendo agendados para os meses seguintes.
Por que Kanban?
- Porque eu não tinha, naquele momento, uma equipe;
- porque eu o utilizaria no âmbito interno e, por isso, não precisaria da aprovação ou adesão dos sócios ou gestores do restaurante;
- (e mais importante das razões) seria a melhor ferramenta para resolver o problema que eu queria sanar: mapear etapas, o andamento de cada etapa, possíveis gargalos e cumprimento de prazos, já que todos os stickers eram “fixed date”.
Mas as questões de melhoria não se resumiam apenas à organização da agenda de eventos. Usando minha formação em Publicidade, eu sabia que “atrair clientes com os gaps de qualidade que tínhamos só faria mais gente saber que tinhamos gaps”.
Foi quando pedi ao sócio gestor um freio de arrumação para acertarmos a casa antes de iniciarmos – sequer – a divulgação das festas de fim-de-ano.
Primeiro passo: listar e priorizar
Começamos a fazer a priorização por grau de importância e valor percebido pelo cliente, as mudanças, correções e melhorias que precisaríamos (ou gostaríamos de) fazer. Inclusive, considerando empecilhos ou dependências externas.
Depois, por termos limitações claras de recursos (verba, tempo e braços), escolhemos como mais importante do mais importante os três itens que menos conflitariam com essas limitações, nesta ordem:
- Redesenho dos Menus,
- customização e
- padrão de serviço.
Por termos menos de um mês para o início do período de festividades, o foco destes ajustes estava concentrado nos eventos apenas, a primeira fatia de melhoria.
Para os novos Menus, envolvemos o Chef (head de equipe). E, a seis mãos (o Chef, o sócio gestor e eu), fizemos opções de cardápios com ingredientes regionais e da época, reduzindo custos com matérias-primas, sem perda de qualidade.
Para a customização dos eventos, seguimos a mesma base, com módulos que iam se encaixando conforme a necessidade e perfil de cada cliente.
Variações que iam do cardápio de petiscos e mini-refeições à Carta de bebidas. Do estilo de serviço open-bar à comanda individual. Até mesmo no estilo musical: com ou sem DJ, com ou sem banda, etc..
Para o padrão de serviço, muita conversa e treino empírico, mostrando na prática procedimentos e etiquetas.
Eis que, com o sucesso que tivemos na empreitada dos eventos, fui convidado, não só para a sociedade da Espumanteria, como para a gestão do Restaurante.
E aí, a coisa muda de figura. Tínhamos agora um desafio ainda maior, com vários sub-desafios ligados a ele. E, novamente, recorri aos Princípios Ágeis para me ajudarem a colocar ordem na casa.
As festas de fim de ano foram um bom case, mas agora estávamos falando no dia-a-dia de um Restaurante de alto padrão, atendendo a Executivos de grandes corporações, no horário de almoço, de janeiro a dezembro.
Ou seja, mais que apagar um incêndio, tínhamos que mexer na Cultura da equipe para que a mentalidade de excelência entrasse no sangue. Usando o jargão Ágil, tivemos de quebrar este Épico em (várias) boas User Stories. E muita adaptação para contornar os desafios.
Sem sombra de dúvidas, o principal deles era a baixa escolaridade do time. Não que seja nenhum demérito. Mas é um fato muito recorrente na mão de obra em nosso País, e que inegavelmente impacta o processo de capacitação.
A solução?
Forrest Gump.
Vi naquela situação a oportunidade ideal para aplicarmos o Scrum no restaurante. Mas como, além dos rituais de serviço exigidos por um restaurante como aquele, ensinar a uma equipe (composta, em sua maioria, por pessoas sem o Ensino Fundamental completo) cerimônias, termos e papéis como Sprints, Reviews, Backlogs, P.O.’s…
Foi quando, resgatando minha base em produção de cinema, me veio a boa e velha filosofia de Forrest Gump:
“Minha mãe sempre tinha um jeito de explicar as coisas para que eu pudesse entender”.
Frase emblemática do personagem de Tom Hanks em Forrest Gump (Paramoun Pictures, 1994)
Passamos a adotar todos os princípios do framework Scrum e da mentalidade ágil, mas sem chamá-los pelo nome, pra não assustar a equipe.
Eu não chamava a Daily de Daily. Só reunia o time diariamente antes do Restaurante abrir e discutíamos sobre os pratos a serem servidos no menu do dia (ingredientes, forma de preparo, degustação; tudo para gabaritar o garçom a tirar dúvidas do cliente).
Também falávamos sobre detalhes de reservas (qual o motivo da reserva de cada mesa, restrições alimentares, etc).
E, principalmente, repassar as melhorias a serem testadas no dia, definidas no fim do expediente do dia anterior, em cima de problemas enfrentados durante o serviço do almoço.
Ou seja, um misto de Daily com Sprint Planning.
Sprints? Diárias! Todo almoço era uma Sprint nova para testar hipóteses de correções de falhas ocorridas na Sprint (dia) anterior. Nenhum cliente gostaria de passar pelo mesmo problema dois dias seguidos. Nem separados.
E, após fechar o Restaurante para o público, nova reunião. Aproveitando que as informações estavam frescas na cabeça de todos quanto a o que deu certo ou errado durante o serviço, sentávamos para avaliar se as soluções desenhadas no dia anterior (e reforçadas na Planning da manhã) eram realmente eficazes.
Resolveu, vira novo padrão. Não resolveu, entra de novo em rodada de brainstorming pra desenharmos possíveis novas soluções, que já serão testadas no dia seguinte.
Uma reunião que seria um mix de Review, Retrospective e Replenishment para o backlog da sprint (dia) seguinte. Mas eu não pronunciava esses nomes nem sob tortura….
A ideia sempre foi trazer a essência da Agilidade, os princípios da mentalidade Lean para benefício do grupo, não para ser mais um ritual burocrático a ser cumprido.
Melhoria contínua
Semanalmente, fazíamos uma reunião mais longa, em que juntávamos todas as equipes (garçons, cozinha, limpeza, Chef) para discussões mais profundas. E discutíamos sobre problemas sistêmicos, operacionais e propostas para melhorias.
Todos sentavam-se com stickers na mão e escreviam sobre problemas e dores que viam de sua posição sobre outros papéis, independente de terem relação direta com eles.
Agrupávamos por assunto os (muitos) post-its que surgiam e, na rodada seguinte, nova chuva de stickers com sugestões de soluções.
Isto não só mostrou-se eficiente por aumentar a sensação de pertencimento e tirar o melindre de alguém opinar sobre a área do outro. Também provou-se eficaz porque, com a inteligência coletiva, resolvemos problemas que jurávamos estar em um ponto, mas que originavam-se em outro.
E a gamificação fazia com que acontecesse uma “corrida de post-its” em nosso quadro Kanban, onde o dono de cada sticker queria que seu papel chegasse mais rápido que os outros na coluna do Done.Claro que sem sofrer penalidade, “parada nos boxes” ou coisas do tipo…. E ficar livre para pegar o próximo no backlog, como num Campeonato de construtores, em que “tive mais carros pontuando no score final”.
Os resultados vieram rapidamente
Internamente, o turn over despencou. Saiu quem destoava e a equipe aprendeu a filtrar melhor quem entrava em substituição, criando um time mais coeso e motivado, com drive na melhoria diária.
Treinamentos empíricos também surtiam mais efeito pois, reduzindo os formings, não perdíamos mais o histórico de aprendizado. Conseguimos criar códigos (inclusive só com olhares) de “deixas” para início de preparo dos pratos, reduzindo em até 20 minutos os intervalos entre entrada, prato principal e sobremesa.
Externamente, os resultados vinham dos feedbacks dos clientes – tanto em pesquisas de opinião quanto no sorriso que estampavam ao retornarem. E quem não gosta de comer bem, rápido, e sendo servido por uma equipe com brilho nos olhos?
E aí, eu te pergunto: consegui te provar minha tese de como a Agilidade é adaptável a qualquer meio? Para dar bons resultados, ela não depende de um time de TI. Só de um time que não tenha medo de arriscar, e que queira aprender todos os dias.
Essa e outras histórias de como uso a mentalidade Ágil, você encontra aqui e também no meu blog. Passa lá!
Autor convidado: Edu Santoro
Edu Santoro tem dois filhos e é um curioso nível hard. Apaixonado por História, viagens, fotografia, tecnologia, cervejas, vinhos, whiskeys, whiskys, culinária, e qualquer ferramenta ou conhecimento – ainda que não relacionado à minha formação de origem – que possa lhe auxiliar na meta de tornar a vida mais leve. Somado a isso, entram mais duas paixões: o storytelling e o prazer de difundir o que aprende.